Em 2011 um
estudante de direito de Viena processou o Facebook (FB) por violação de dados,
por armazenar informações que, segundo o mesmo, deveriam ser completamente deletadas,
mas que, segundo o FB, são apenas “removidas” do ambiente virtual da rede, mas
não deletadas dos servidores. O mesmo
estudante criou um site chamado “Europe versus Facebook”, onde é possível acompanhar o andamento do processo. Há também
um vídeo no YouTube
explicando o caso. Existe um outro vídeo
que, apesar de apresentar informações verdadeiras, acaba abordando a questão de
um ponto de vista exageradamente conspiratório, reduzindo um conjunto complexo de
fatores e relações de interesse político e econômico que resultaram na criação
e popularização do FB a um plano conspiratório arquitetado, segundo o vídeo, por
três cabeças, a saber, ‘uma estrela midiática [Mark Zuckerberg], um
filósofo o futurista que quer destruir o
mundo real [PeterThiel] e um terceiro investidor envolvido diretamente com a CIA [James Breyer]’. O vídeo
parece ter se inspirado em um artigo (tradução) de Tom
Hodgkinson, publicado no The Guardian em 2008. No entanto, ao contrário desse
artigo, o vídeo apresenta as informações de maneira muito mais resumida e
simplista.
Ao que me consta, Peter Thiel, apesar de ser graduado em filosofia pela universidade de Stanford,
é reconhecido mais como um gênio investidor do que como filósofo. Além disso,
Thiel é membro do The
Vanguard Project – sob direção de Rod D. Martin
– um esforço para construção de uma plataforma tecnológica e de uma infra-estrutura
organizacional que viabilize o ativismo dos defensores da liberdade
(sic). Mas há uma entrevista
interessante de Thiel onde ele expõe algumas das razões “filosóficas” que orientam
seus investimentos, há também um artigo, "A educação de um libertário", onde afirma que “Em face dessas realidades, alguém poderia se
desesperar vendo o limitado horizonte do mundo da política. Eu não me desespero
porque já não acredito mais que a política abarque todas as possibilidades
futuras do nosso mundo. No nosso tempo, a grande tarefa para os libertários é
encontrar uma escapatória da política de todas as formas – da totalitária,
fundamentalista e catastrófica chamada ‘democracia social’”.
Thiel
foi co-fundador do PayPal e
nos primórdios do FB, quando este já gozava de certa popularidade, investiu
meio milhão de dólares na empreitada tecnológica de Zuckerberg. Na entrevista
citada acima, fica mais claro porque Thiel não crê que a política abarque todos
os futuros possíveis do nosso mundo. Se Thiel realmente não crê nisso, então quais
são as bases da sua visão libertarian
de mundo? Como disse anteriormente, Thiel é mais reconhecido como investidor do
que como filósofo; desse modo, creio que a base e motivação do seu libertarismo
é essencialmente econômica. Apesar do papo filosófico, todo o papo sobre
liberdade, resume-se apenas a liberdade para ganhar dinheiro do jeito que bem
entender, conforme as “necessidades” do mercado. A política e a filosofia,
apesar de serem indispensáveis para a realização desse projeto, não são
propriamente a preocupação central desse grupo de investidores de risco. Nesse
sentido compreende-se porque a política se apresenta para ele como um mundo de
horizonte limitado. Quando o assunto é livre mercado, o debate político parece
se colocar sempre como um entrave para a ampliação dos horizontes e dos lucros
futuros possíveis do nosso mundo. A expressão máxima dessa liberdade se da na
prática do consumo, e veremos mais adiante os limites dessa concepção “libertária”,
que é bem resumida na fala de uma personagem do filme Cronicamente Inviável, para
a qual “a
liberdade de consumo é a única que deu certo até hoje”.
Na
entrevista supracitada, quando o entrevistador pergunta a Thiel como ele se
envolveu no projeto do PayPal, este responde que a ideia surgiu quando ele e
alguns amigos queriam começar uma empresa que iria mudar o mundo (horizonte
político) e mudar as moedas, criando uma nova moeda privada (horizonte
econômico). Quando perguntado sobre a possibilidade de o PayPal ser, em breve,
totalmente internacionalizado, ele responde que apesar de haver regulamentos
distintos em cada país acerca desse tipo de transação, o mundo tem se tornado
cada vez mais globalizado nos últimos 8, 9 anos, desde o lançamento do serviço.
Vê-se porque Thiel não deixa limitar o seu horizonte ao mundo da política. Na
atual conjuntura a política é, de modo geral, trabalho para políticos
profissionais, financiados por investidores como Thiel para abrirem caminho
para a realização dos seus investimentos.
Não penso que Thiel
seja um filósofo. Assim como todos esses aventureiros do capital de risco, para
quem a economia não passa de ciência do lucro, Thiel pensa que a política não
abarca todos os futuros possíveis de nosso mundo, pois nem todos esses futuros
possíveis serão necessariamente desejáveis de um ponto de vista político.
Somente em uma economia concebida como ciência do lucro qualquer futuro
possível é desejável... Claro, desde que seja bom para os negócios.
Como se
pretende mostrar mais adiante, esse capitalismo “libertário” pode estar, em
certo sentido, muito próximo de um novo tipo de fascismo que, conforme Michel
Onfray, não é mais aquele “fascismo de leão”, nacionalista e racista, mas um
“fascismo de raposa” que
tira as lições do passado e supõe arranjos formais,
revoluções de significantes. Porque o liberalismo é plástico: aí está, de
resto, a sua força. O golpe de Estado não é popular: visível demais,
indefensável demais nessas horas de midiatização planetária e de pleno poder
das imagens. Pega mal... Donde a rejeição da violência do leão maquiavélico em
benefício da raposa pertencente ao mesmo bestiário, mas célebre por sua
astúcia, sua velhacaria, sua vigarice. O leão recorre à potência do exército, a
raposa à força dos arranjos discretos (2010, p.128).
Mesmo levando
em conta o que dizem os adeptos dessa teoria, a meu ver a preocupação central dele
não é política (libertarian), afinal,
ele não se deixa limitar por esse horizonte, a questão política é apenas um
meio de viabilizar os negócios que, quando parar de render bons lucros ou mais
dinheiro, ele pulará fora, para outro negócio, outro nicho de mercado. É mais
um daqueles “espertos ao contrário” que para manter a imagem de bom moço tem um
discurso, mas a prática implica justamente o contrário do que prega, não a
liberdade, mas apenas mais uma nova forma de liberdade tutelada, vigiada e
consumível.
No
entanto, não creio que Thiel queira destruir o mundo real (pelo menos não nos
termos e no tom do vídeo-documentário supracitado), pois é nesse mundo que ele
poderá desfrutar daquilo que lucrou com o mundo “virtual”. Além do mais, não
creio que tenha investido tanto dinheiro no FB motivado pela ideia de criar uma
experiência de manipulação global em um sentido orwelliano, mas sim uma plataforma
tecnológica que viabilize o ativismo dos defensores da “liberdade” e, ao mesmo
tempo e principalmente, encha seu bolso de dinheiro. O FB pode ser utilizado
tanto na manipulação e ativismo de direita quanto de esquerda. Não que o FB não
possa ser ou não é usado para esse fim, mas não creio que tenha sido pensado e
idealizado com esse objetivo, apesar de ter esse potencial e de poder ser
utilizado dessa maneira.
Um indício de
que Thiel está, em último caso, mais interessado no potencial financeiro do FB do
que em possíveis experimentos de engenharia social é o fato de o mesmo ter vendido
recentemente a maioria de suas ações da rede social (ações
estas que já estão em queda). Se não está dando mais o retorno financeiro
esperado, não há projeto ou motivações políticas para uma manipulação global que
se sustente. Não se trata de dizer que há uma conspiração nesse sentido,
algumas ações podem ser calculadas, mas não é possível calcular tudo, outras
situações vão se constituindo de maneira acidental, aleatória ou imprevista.
Thiel pode não ter nenhuma dessas intenções, mas a meu ver essas são as
conseqüências dos negócios e das práticas financeiras que ele e outros
investidores realizam.
O “fascismo” não tem mais essa cara:
Ao contrário, agora a
nova cara do fascismo, desse microfascismo de raposa, é essa:
Em algumas
ocasiões esta imagem costuma vir acompanhada com os seguintes dizeres: “sorria,
você está sendo filmado”. Simpático, não?
Em
2005, James Breyer, presidente da firma de capital de risco Accel Partners, empresa que
detém 11% do FB, investiu 12,7 milhões de dólares na rede social de Zuckerberg.
Breyer, assim como Gilman
Louie, foi presidente da associação comercial que representa a indústria de
capital de risco nos EUA, a National Venture Capital Association (NVCA), e atuaram
juntos no conselho administrativo da associação.
De fato, tanto Louie quanto Breyer não estão acima de
qualquer suspeita. Louie já foi membro do grupo de assessoramento técnico do comitê de inteligência do
senado dos EUA, bem como da comissão nacional de revisão de programas de
pesquisa e desenvolvimento da comunidade
de inteligência dos EUA, recebendo diversos prêmios pelos serviços
prestados. Em 1999 foi escolhido pela CIA para dirigir a In-Q-Tel que, segundo o próprio Louie, é um fundo
de investimento estratégico criado para ajudar a melhorar a segurança nacional,
ligando a CIA e a comunidade de inteligência dos EUA com empresas de capital de
risco que investem no desenvolvimento de novas tecnologias. Segundo
Louie, essa parceria público-privada surgiu da necessidade de transferir
tecnologia da informação para a CIA mais rapidamente do que os processos de
aquisição tradicionais. Desse modo, como a CIA não estava conseguindo mais
acompanhar o processo de desenvolvimento tecnológico, isto é, como o Estado
estava ficando para trás, resolveram estabelecer um fundo de capital de risco
para alimentar empresas de alta tecnologia. A partir desse fundo investe-se em
empresas que desenvolvem tecnologia (tais como FB) do interesse das agências de
inteligência norte-americanas.
Desse modo, há uma complexa rede de empresas de
tecnologia e de investidores de capital de risco que mantêm relações com a
In-Q-Tel, algumas de maneira indireta, todos trabalhando para o governo dos
EUA, em troca de alguns milhões de dólares, claro. O FB de Zuckerberg é apenas
mais uma dessas empresas a receber recursos desse fundo ou através de
investidores ligados a ele, investimento que certamente tem sido bem sucedido.
Tanto Thiel quanto Breyer mantiveram e mantêm relações direta ou indiretamente
com essas agências e fundo de investimento, pois atualmente esse é um bom nicho
de mercado. Eles trabalham para o governo, utilizando recursos de um fundo de
investimento público, aplicando-o nas empresas nas quais são diretores,
lucrando duplamente com o negócio. Aliando o útil ao agradável, desenvolvem
tecnologia para as agencias de inteligência, para o Estado e governo, ao passo
que essas financiam o desenvolvimento dessa tecnologia, esses investidores as
utilizam também com um fim comercial, peneirando as informações e vendendo-as
para empresas e agencias de publicidade. Não há dúvida de que são gênios na
arte de ganhar dinheiro.
O Big Brother não é uma pessoa, ou três cabeças que
querem manipular/ dominar o mundo, mas uma rede complexa de pessoas e
instituições, rede esta a qual, por mais distante e indiferente que possa
parecer, também fazemos parte. The Big Brother is YOU! Não é possível
compreender o que está passando ou acontecendo atualmente a partir de uma visão
estritamente orwelliana do mundo. Nossa realidade é muito mais sofisticada e
complexa do que supunha Orwell. O estado e as empresas espiam os
cidadãos e os consumidores (articulação do horizonte político com o
econômico-financeiro). Os cidadãos também espiam algumas atividades (as mais
públicas) dos políticos e dos empresários. E agora, com o WikiLeaks, já temos tido algum acesso a
informações sigilosas, mas que, ao contrário do que acontece nas redes sociais,
onde fornecemos informações pessoais voluntariamente, o vazamento dessas
informações, por serem altamente sigilosas, colocou a corda no pescoço de Assange.
Desse modo, as
redes sociais, e-mails ou quaisquer serviços oferecidos por empresas como o
Google, não têm por objetivo apenas “aproximar as pessoas”. Como o Gmail
direciona publicidade especificamente sobre temas e assuntos dos meus e-mails? “Este anúncio é baseado em e-mails de sua caixa de
correio. Acesse o Gerenciador de preferências de anúncios do Google para saber mais, bloquear anunciantes
específicos ou desativar anúncios personalizados”. No entanto, não há a opção
de desativar os anúncios, apenas de desativar anúncios personalizados, o que é muito
pior, pois acaba enviando todo tipo de anúncio para a página inicial do Gmail,
e não aqueles que dizem respeito ao conteúdo dos meus e-mails.
A tecnologia desenvolvida para isso permite a construção
de vários perfis de usuários, um prato cheio para qualquer agência de segurança,
e é por isso que estão investindo pesado nessas empresas que, como disse,
lucram duplamente com isso. No entanto, creio que a tendência é não haver (isso
se já não há) mais um centro de inteligência com acesso privilegiado a informação.
As informações estão cada vez mais acessíveis a todo mundo, basta saber acessá-la
(como tem feito o wikileaks). Hoje em dia todos somos potenciais agentes de
espionagem. A questão não é deixar ou não deixar de utilizar esses serviços,
mas de pensar o que estamos fazendo de nós mesmos em relação a isso, de que
maneira estamos vivendo isso e se é possível utilizar esses recursos de maneira
tal a não alimentar essa lógica microfascista.
Outra lição magistral, a de La Boétie: ele afirma em seu
Discurso da servidão voluntária que
todo poder se exerce com o assentimento daqueles sobre os quais se manifesta.
Esse microfascismo não vem de cima, portanto, mas se irradia ao modo rizômico
com atravessadores – potencialmente, cada um de nós... – que se tornam
condutores, no sentido elétrico, dessa energia ruim. Essa constatação constitui
o primeiro tempo necessário para uma lógica de resistência. Saber onde está a
alienação, como ela funciona, de onde provém, permite encarar a continuação com
otimismo (ONFRAY, 2010, p.128).
Talvez
tudo isso possa parecer muito estranho, afinal, não temos nenhuma força ou
poder que nos obrigue a isso, agimos assim voluntariamente, já não há mais um
governo opressor exercendo seu poder sobre nós, não há mais ditadura, o
fascismo e o estado policial sucumbiram há muitos anos. No entanto, o “fim”
desses estados totalitários ou governos ditatoriais se devem mais as lutas
sociais ou ao fato de os mesmos já não serem mais necessários? O
desenvolvimento tecnológico na área da comunicação e da computação se confunde,
em certo sentido, com o desenvolvimento de novas tecnologias do poder e de
novas técnicas de governo, ou melhor, de governamento.
As ditaduras leoninas se tornaram ou vem se tornando cada vez mais obsoletas. Vivemos
“livremente”, pois o uso da força bruta ou o exercício explícito desse poder de
leão já não é mais tão necessário (isso não quer dizer que não possa voltar a
ser). A raposa sabe ser mais sutil.
Foi
uma das coisas mais horríveis que o castrismo conseguiu: romper os laços de
amizade, fazer com que desconfiássemos dos nossos melhores amigos,
transformá-los em informantes, em tiras. (...) O mais dramático de tudo foi que
muitas pessoas se tornaram vítimas da chantagem e do próprio sistema, até
perderem sua própria condição humana (ARENAS, 1995).
Em muitos
regimes totalitários, uma das estratégias das organizações de inteligência e
polícia secreta era a de recrutar informadores civis. A STASI, polícia secreta da Alemanha
Oriental é um bom exemplo da utilização desse método de espionagem, criando
uma grande rede social de informantes civis. Se antes o recrutamento se
dava em um ambiente de tensão e repressão, onde muitos cidadãos se viam
obrigados a espionar seus amigos, atualmente as estratégias de recrutamento são
mais sofisticadas. A CIA tem utilizado o
facebook como centro de recrutamento, criando até um vídeo institucional para a
divulgação da campanha intitulada “CIA Clandestine Service Ad”.
Não há nada por trás da cortina, está tudo aí, basta abrir os olhos e ver.
Em relação ao caso ou
exemplo cubano há o livro do qual extraí o trecho citado anteriormente, uma
autobiogradia de Reinaldo
Arenas, que inspirou o filme Before Night Falls
(Antes do anoitecer), com Javier
Bardem. Em relação ao caso alemão há outro filme, A vida dos outros,
que busca retratar como a polícia secreta monitorava a vida da população
através das informações prestadas pela própria população. Nos dois casos o alvo
da perseguição e vigilância são escritores. No entanto, no caso de Arenas, a
sua contrariedade em relação ao regime castrista era mais visível e declarada,
“justificando” a perseguição sofrida; no caso do personagem do filme A vida dos outros, Georg Dreyman é um
dramaturgo que nunca contestou o governo e o regime no qual vivia, mas mesmo
assim ele e sua namorada acabam virando objeto de vigilância e perseguição,
sendo a namorada de Dreyman vítima de chantagem em troca de favores sexuais.
Todas essas
práticas que marcaram nossa história e que normalmente são relacionadas ao
passado e a regimes políticos autoritários já inexistentes ainda estão, na sua
sutileza de raposa, muito presentes na nossa atualidade. Aqui novamente a
questão não é manter ou não manter relação com esses serviços, mas que tipo de
relação temos, podemos e/ou queremos ter com eles, e não se deixar fisgar e/ou
cooptar acriticamente por essa lógica de poder.
Voltando à
questão da liberdade, vimos que a criação dessas plataformas tecnológicas, de
toda essa infra-estrutura organizacional que pretende viabilizar o ativismo dos
defensores da “liberdade” tais como Thiel e cia, não é assim tão libertária.
Aqui não é possível falar em Liberdade de modo geral, pois ela possui diversas
acepções, e não um sentido geral, universal ou único. Por mais paradoxal que
possa parecer também é possível falar de uma liberdade fascista. Assim, o
conceito de Liberdade é compreendido de diversas maneiras, entre diversas
correntes políticas e de pensamento, tais como os neoconservadores libertarians
como Thiel, anarquistas de diversas vertentes, socialistas, comunistas etc. Na
década de 30, o General Góes Monteiro, ministro da guerra de Getúlio Vargas,
admirador do nazi-fascismo, publicou um artigo no jornal O Estado de São Paulo onde afirmava que
Toda a liberdade concedida contra os interesses do
Estado será um foco de onde podem brotar germens perigosos. Toda liberdade para
fortalecer a segurança do Estado é um bem para a coletividade que deve viver
sob permanente equilíbrio social – o que só a justiça incorruptível alcançará,
guiada pelo senso das nossas realidades e necessidades (Gen. Góes Monteiro apud
Moura, 1933, p. 7).
Agora experimentemos
fazer um pequeno jogo de palavras, substituindo no texto acima a palavra
“Estado” por “Mercado”, que teremos uma ideia do quão próximo pode estar o
libertarianismo neoconservador de Thiel da concepção de liberdade do Gen. Góes
Monteiro, a concepção de liberdade dos fundamentalistas do livre mercado da
concepção de liberdade dos fundamentalistas do Estado total.
A partir do texto de Étienne de La
Boétie, citado por Onfray, Discurso
da servidão voluntária, e o capítulo 7 do livro Arqueologia
da violência – pesquisas de antropologia política de Pierre Clastres, poderíamos
abordar a questão da liberdade e de como somos levados a abrir mão dessa
liberdade, do amor a liberdade para, voluntariamente, passar a desejar e amar a
servidão. A relação que muitas pessoas estabelecem com as plataformas
tecnológicas não é uma relação de liberdade, mas de um aprisionamento que
reforça a servidão a uma determinada estratégia de poder político, isto é,
aquela defendida por adeptos de projetos como o The Vanguard Project e de todos
aqueles investidores ou capitalistas de risco citados anteriormente. Mas como
explicar o fato de abrirmos mão voluntariamente da nossa privacidade, do nosso
tempo, para nos dedicarmos a esse tipo de compartilhamento de informação e
relação social? Aqui, creio, entraria outra questão complicada, a do desejo.
Essa questão do
desejo e da manipulação do desejo é uma das questões
centrais apontadas por Foucault
em Introdução
à vida não-fascista, em relação a uma arte de viver contrária a todas
formas de fascismo. Sobre isso, ele levanta três questões, a saber, “Como
introduzir o desejo no pensamento, no discurso, na ação?” (podemos
problematizar, assim como o fez La Boétie, como o fascismo introduz certo
desejo nas pessoas. Sobre isso o texto da Maria Lacerda de
Moura traz um bom exemplo), “Como o desejo pode e deve desdobrar suas
forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem
estabelecida?” (aqui, claro, ele está se referindo a uma estratégia
antifascista) e, por conseguinte, “Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos
corações e nossos prazeres [e desejos] do fascismo?”.
O sucesso
dessas plataformas tecnológicas, do consumo desenfreado de todos os produtos
tecnológicos fabricados e com data de validade pré-determinada (a chamada
obsolescência programada), a produção desse sentimento de necessidade de que
“não posso viver sem isso”, não é apenas fruto, o resultado de uma estratégia
política e econômica bem sucedida de moldar e deformar o desejo da população? O
fato de eu desejar fazer algo, consumir um produto ou entrar em uma rede social
e, “voluntariamente”, tornar públicas informações pessoais, significa que a
ação decorrente desse desejo é uma ação livre? E esse desejo, é um desejo
somente meu ou é um desejo coletivo?
Não há como dar
conta de todas essas questões neste ou mesmo em qualquer outro momento
específico. Desse modo, apenas citarei, como sugestão de leitura, um trecho da
apresentação do livro A República de
Platão: a boa sociedade e a deformação do desejo, de Martha Nussbaum, que
discute um pouco essa questão.
Nussbaum estabelece uma discussão sobre o conflito
entre liberdade de escolha e deformação do desejo em nossa democracia e em
regimes não-liberais, que sustentam serem incompatíveis liberdades políticas e
bem-estar humano. Nussbaum substitui a discussão filosófica platônica baseada
em verdades absolutas, por outra baseada no discernimento ético, como nos
ensina Aristóteles. Em suma, Nussbaum nos convida para uma reflexão sobre
liberdades que se apresentam como negociáveis e como não-negociáveis,
constituindo, desse modo, uma permanente tensão (2004, p. 10).
Alguns
liberais parecem defender uma paradoxal concepção de liberdade (especialmente
os mais radicais). Há ideia mais totalizante e autoritária do que aquela que pretende
condicionar as relações sociais, políticas ou econômica, o mundo, a uma única
lógica, a do livre mercado e do consumo? Liberdade de mercado não é Liberdade
em geral, pois também pode engendrar outras formas de aprisionamento, servidão
ou sujeição. Claro que nem todo mundo sabe ou se importa/ preocupa com isso. A
questão é que podemos sempre pensar em alternativas possíveis, e não aceitar
uma doutrina ou proposta política dogmaticamente, como se fosse a verdade
absoluta ou o fim da história. É interessante perceber o uso político do apelo
a uma pretensa autoridade científica para justificar “cientificamente” de que a
concretização ou realização de um determinado padrão ou modelo político,
econômico e/ou sócio-cultural representa a realização do espírito absoluto, do
fim da história e do bem-estar universal.
Não é possível
defender taxativamente essas visões de mundo, pois não são perfeitas, não tratam
somente de verdades científicas, mas também de outras coisas, que dizem respeito
também ao modo de vida que as pessoas pretendem levar, aquele que a conjuntura
lhes permite ter e as brechas pelas quais é possível mudar. Penso que se há uma
estratégia política na qual a esquerda, apesar de controversa, logrou algum
êxito foi a de agir nas brechas, principalmente em determinados períodos
históricos, no entanto, atualmente certos setores tem se fechado a diversas
possibilidades de resistência e prática política, optando apenas pelo jogo de
cena, pelo panelaço, pela agitação publicitária. A midiatização da política
está presente nas práticas políticas mais cotidianas e infinitesimais, e não
somente entre grandes partidos em período eleitoral.
A revolução
cultural gramsciana defendida por alguns esquerdistas não se completará se não for
aprofundada, sendo irradiada globalmente nas malhas da rede social e não apenas
em um ou alguns locais privilegiados da rede, e esse trabalho passa também por
um processo educativo, pensar a formação também como um trabalho sobre si mesmo
e do outro, na relação entre o si e o outro, para que o modo de pensar o macro
seja coerente com a prática política cotidiana, pois é ela que permitirá a
realização dos objetivos macropolíticos de um determinado projeto de poder (e acredito
que a estratégia da nossa esquerda hegemônica tem sido somente essa e até aí
tem sido bem sucedida) ou de liberação de determinadas sujeições cotidianas que
são a base das mais globais. Esse é um trabalho que já existe, mas que a
esquerda da esquerda parece não conseguir compreender ou aceitar, agindo mais na
lógica do jogo político da conscientização que não conscientiza nada, que
termina por virar em apenas mais um método refinado de sujeição ao pensamento
único, ou seja, uma prática totalitária, não libertária. Acredito que a esquerda
precisa repensar sua espiritualidade de esquerda (não em um sentido religioso,
mas político, ético), e não se prender a dogmas que não intensificam sua luta
política, mas apenas enfraquecem-na; o que, se não a leva a inanição, a leva a
cooptação política.
Por
isso acredito ser importante estar atento aos arranjos discretos da raposa,
pois ela sabe muito bem como armar um circo (das eleições, das assembléias, dos
conselhos deliberativos, dos sindicatos etc), fazer com que todo mundo
participe, se expresse livremente, vote, fazendo depois justamente o contrário
daquilo que as pessoas esperavam. E essa raposa não é somente o outro. Não é
uma pessoa ou uma coisa, um paradigma político ou econômico. Não se trata tanto
de ser ou não ser, mas de devir-ser. Esse devir-raposa atravessa a todos, ou
seja, ela é ou pode ser cada um de nós em momentos ou práticas específicas.
Nas palavras de Foucault (2010, p. 06),
O liberalismo, o jogo:
deixar as pessoas fazerem, as coisas passarem, as coisas andarem, laisser-faire,
laisse-passer e laisser-aller, quer dizer, essencial e
fundamentalmente, fazer de maneira que a realidade se desenvolva e vá, siga seu
caminho, de acordo com as leis, os princípios e os mecanismos que são os da
realidade mesma (FOUCAULT, 2009, p.62-63).
No entanto, a ação livre
não se resume ou se reduz a liberdade de escolha ou de consumo. A estratégia da
decisão coletiva pode não ter nada de coletivo. Aquela escolha que me faz ir
até uma loja comprar um produto não se confunde, necessariamente, com o
exercício da liberdade individual, pois não se trata apenas de uma escolha
individual. A sutileza é que faz a diferença. Não ficar atento a elas ou estar
cego a elas é ficar a mercê da história, preso não na caverna platônica, mas no
teatro da democracia liberal. O pior não é não se dar conta disso ou mesmo
atuar no teatro por alguma necessidade tática ou estratégica, mas defender que
o teatro é a única coisa que deu certo até hoje sem jamais criticá-lo,
procurando operar modificações, adaptações ou improvisações. A estratégia
lúdica desse teatro liberal serve como
matriz de inteligibilidade para o desenvolvimento de novos dispositivos de
segurança, e não é por outra razão que os EUA e suas agências de inteligência e
segurança têm dado suporte financeiro a esses investidores de risco para que
incentivem e financiem a produção de tecnologia da informação. Desse modo, estou
de acordo com Foucault, pois
um dispositivo de segurança
só poderá funcionar bem, em todo caso aquele de que lhes falei hoje, justamente
se lhe for dado certa coisa que é a liberdade, no sentido moderno [que essa
palavra] adquire no século XVIII: não mais as franquias e os privilégios
vinculados a uma pessoa, mas a possibilidade de movimento, de deslocamento,
processo de circulação tanto das pessoas como das coisas. E é essa liberdade de
circulação, no sentido lato do termo, é essa faculdade de circulação que
devemos entender, penso eu, pela palavra liberdade, e compreendê-la como sendo
uma das faces, um dos aspectos, uma das dimensões da implantação dos
dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2009, p.63-64).
De acordo com Foucault,
a nova razão governamental é consumidora de liberdade, podendo funcionar
somente se existir efetivamente certo número de liberdades pré-determinadas/fabricadas:
“liberdade do mercado, liberdade do vendedor e do comprador, livre exercício do
direito de propriedade, liberdade de discussão, eventualmente liberdade de
expressão, etc” (id., ibid, p. 86-87).
A nova razão governamental
necessita portanto de liberdade, a nova arte governamental consome liberdade.
Consome liberdade, ou seja, é obrigada a produzi-la. É obrigada a produzi-la, é
obrigada a organizá-la. A nova arte governamental vai se apresentar portanto
como gestora da liberdade, não no sentido do imperativo “seja livre”, com a
contradição imediata que esse imperativo pode trazer. Não é o “seja livre” que
o liberalismo formula. O liberalismo formula simplesmente o seguinte: vou
produzir o necessário para tornar você livre. (...) O liberalismo, no sentido em
que eu o entendo, esse liberalismo que podemos caracterizar como a nova arte de
governar formada no século XVIII, implica em seu cerne uma relação de
produção/destruição [com a] liberdade [...]. É necessário de um lado, produzir
a liberdade, mas esse gesto mesmo implica que, de outro lado, se estabeleçam
limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc.” (id.,
ibid.).
O liberalismo não aceita a liberdade, ele a
produz, a fabrica, transforma-a em mercadoria a ser consumida. Esses são, ao
que me parece, os limites da liberdade liberal, especificamente aquela através
da qual se justifica a estratégia política e econômica dos libertarians como
Thiel. A criação de uma determinada plataforma tecnológica e de uma
infra-estrutura organizacional é parte integrante dessa estratégia, as redes
sociais são apenas uma dessas plataformas, cujo financiamento para seu
desenvolvimento está relacionado a constituição de uma estrutura organizacional
envolvendo empresas e fundos privados de capital de risco, o estado e fundos
públicos para o financiamento de empresas de capital de risco que investem em
jovens programadores como Zuckerberg que
estão desenvolvendo tecnologia da informação de interesse das agências de
segurança do governo. Seguindo o pensamento de Foucault, a nova razão
governamental necessita da liberdade para manter tudo sob seu controle, como já
não consegue mais fazer isso sozinho, estabelece relações público-privadas para
viabilizar seu projeto de produção e consumo de liberdade.
BIBLIOGRAFIA
ARENAS, R. Antes que anoiteça. Rio de Janeiro: Record, 1995.
FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
MOURA, M. L. Serviço militar obrigatório para a mulher? Recuso-me!Denuncio! São
Paulo: A Sementeira, 1933.
NUSSBAUM, M. A República de Platão: a boa sociedade e a deformação do desejo.
Porto Alegre: Editora Bestiário, 2004.
ONFRAY, M. A potência de existir: manifesto hedonista. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2010.
OUTRAS REFERÊNCIAS
A publicidade do fórum da
liberdade foi retirado do jornal Correio do Povo de 2008.