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quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Fidelidade é amor fiel, e fiel antes de mais nada ao amor

Que há casais fiéis e outros não, é uma verdade de fato, que não parece, ou já não parece, atingir o essencial. Pelo menos se entendemos por fidelidade nesse sentido restrito, o uso exclusivo, e mutuamente exclusivo, do corpo do outro. Por que só amaríamos uma pessoa? Por que só desejaríamos uma pessoa? Ser fiel a suas ideias não é (felizmente!) ter uma só ideia: nem ser fiel em amizade supõe que tenhamos um só amigo.  Fidelidade, nesses domínios, não é exclusividade. Por que deveria ser diferente no amor? Em nome do que poderíamos pretender o desfrute exclusivo do outro? É possível que isso seja mais cômodo ou mais seguro, mais fácil de viver, talvez, no fim das contas, mais feliz, e, enquanto houver amor, até acredito que seja. Mas nem a moral nem o amor parecem estar presos a isso por princípio. Cabe a cada um escolher, de acordo com sua força ou com suas fraquezas. A cada um, ou antes a cada casal: a verdade é valor mais elevado do que a exclusividade, e o amor me parece menos traído pelo amor (pelo outro amor) do que pela mentira. Outros pensarão o contrário, talvez eu também, em outro momento. Não é isso o essencial, parece-me. Há casais livres que são fiéis, à sua maneira (fiéis ao seu amor, fiéis à sua palavra, fiéis à sua liberdade comum...). E tantos outros, estritamente fiéis, tristemente fiéis, em que cada um dos dois preferiria não o ser... O problema, aqui, é menos a fidelidade do que o ciúme, menos o amor do que o sofrimento. Não é mais meu tema. Fidelidade não é compaixão. Serão duas virtudes? Sem dúvida, mas, justamente: são duas. Não fazer sofrer é uma coisa; não trair é outra, e é o que se chama fidelidade.
O essencial é saber o que faz com que um casal seja um casal. O simples encontro sexual, por mais repetido que seja, não bastaria evidentemente para tanto. Mas também não a simples coabitação, por mais duradoura que seja. O casal, no sentido em que uso a palavra, supõe tanto o amor como a duração. Supõe, portanto, a fidelidade, pois o amor só dura sob a condição de prolongar a paixão (breve demais para fazer um casal, suficiente para desfazê-lo) por memória e vontade. É o que significa o casamento, sem dúvida, e que o divórcio vem interromper. Se bem que... Uma amiga minha, divorciada, depois recasada, dizia-me que permanecia fiel, em alguma coisa, a seu primeiro marido. “Quero dizer”, explicou-me, “ao que vivemos juntos, a nossa história, a nosso amor... Não quero renegar tudo isso.” Nenhum casal, com maior razão, poderia durar sem essa fidelidade, em cada um, à sua história comum, sem esse misto de confiança e de gratidão pelo qual os casais felizes (há alguns) se tornam tão comoventes, ao envelhecer, mais até que os namorados que começam, que, na maioria dos casos, ainda não fazem mais do que sonhar o seu amor. Essa fidelidade me parece preciosa, mais que a outra, e mais essencial ao casal. Que o amor se aplaque ou decline, é sempre o mais provável, e é bobagem afligir-se com isso. Mas quer se separe, quer continue a viver junto, o casal só continuará sendo casal por essa fidelidade ao amor recebido e dado, ao amor partilhado e à lembrança voluntária e reconhecida desse amor. Fidelidade é amor fiel, dizia eu, e assim é também o casal, mesmo o casal “moderno”, mesmo o casal “livre”. A fidelidade é o amor conservado ao que aconteceu, o amor ao amor, no caso, amor presente (e voluntário, e voluntariamente conservado) ao amor passado. Fidelidade é amor fiel, e fiel antes de mais nada ao amor.
Como eu poderia jurar que sempre te amarei ou que não amarei outra pessoa? Quem pode jurar seus sentimentos? E para que, quando não há mais amor, manter a ficção, os encargos ou as exigências do amor? Mas isso não é motivo para renegar ou não reconhecer o que houve. Por que precisaríamos, para amar o presente, trair o passado? Eu juro não que sempre te amarei, mas que sempre permanecerei fiel a esse amor que vivemos.

O amor infiel não é o amor livre: é o amor esquecidiço, o amor renegado, o amor que esquece ou detesta o que amou e que, portanto, se esquece ou de detesta. Mas será isso ainda amor? Ama-me enquanto desejares, meu amor; mas não nos esqueça.

COMTE-SPONVILE, A. Pequeno tratado das grandes virtudes. 2a. Ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 34-36.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Universidade, apropriação e re-produção de conhecimento

A Universidade não se apresenta apenas como um dos problemas da Educação em geral, mas como um dos problemas do processo de escolarização contemporânea, na “urgência” ou “necessidade” de sua adequação a uma economia de mercado e a uma sociedade de consumo. No entanto, o problema não está apenas, e de modo geral, na (in)distinção entre público e privado, mas também na (in)distinção entre o educador e o profissional-oficial da educação escolarizada, mais conhecido como “professor” (na universidade há ainda o oficial da pesquisa, em suas duas categorias e variados níveis). É possível estabelecer uma relação entre apropriação e re-produção do conhecimento mais próxima da figura de um educador do que a de um oficial que desempenha uma determinada função dentro do quadro burocrático do Estado? De que modo a educação concebida dentro desse quadro pode ser problematizada a partir da concepção de Universidade fundamentada no chamado tripé Ensino-Pesquisa-Extensão?

Desse modo, a essa temática geral articula-se a seguinte questão: a quem ou para que serve o conhecimento apropriado, produzido e reproduzido na Universidade? Se partirmos da hipótese ou pressuposto de que a Universidade deve cumprir um ou mais papéis sociais, então teremos de admitir que o conhecimento que ali é produzido ou reproduzido garanta mais do que apenas a produção ou reprodução indefinida de novos conhecimentos. Ora, mas qual tem sido a concepção de produção científica se não a de uma produção e reprodução indefinida de novos “papers”?

A Universidade fundamenta-se, pelo menos idealmente, no chamado tripé ensino-pesquisa-extensão. Se a Universidade fundamenta-se neste tripé, isso pressupõe que a próprio conceito de “universidade” depende da definição articulada de outros três conceitos. Sem a articulação entre esses três conceitos que, por conseguinte, devem implicar numa prática educacional articulada, uma das bases do tripé ficará comprometida, logo, compromete-se o fundamento mesmo daquilo que compreendemos e concebemos como Universidade, colocando em cheque a existência dessa instituição enquanto tal. Dessa maneira, para compreender a questão da apropriação e re-produção do conhecimento é preciso articulá-la à essa outra problemática, do tripé, sem a qual o conceito ou funcionalidade da instituição universitária fica comprometida dentro daquilo que se propõe a realizar enquanto instituição que deve cumprir uma “função social”.

Ao primeiro elemento deste tripé, o Ensino, vincula-se tradicionalmente a tarefa ou atividade de transmissão de conhecimentos. Com isso o Ensino estaria mais atrelado à reprodução e apropriação de determinados conhecimentos do que a sua produção. A produção é comumente relacionada ao segundo elemento do tripé, a Pesquisa. Esta seria a atividade de produção de novos conhecimentos a partir do conhecimento do que já está dado e dos novos problemas por eles colocados, que tenham o objetivo de completar algumas lacunas dos já existentes ou mesmo revolucioná-los. A atividade do primeiro pé (Ensino) é geralmente atribuída à figura do professor, e a atividade do segundo à figura do pesquisador ou cientista. Mas e a Extensão, o que é e para que serve? Quem é o profissional responsável pelas atividades de extensão, quem é o “extensionista”?

Se a atividade de ensino refere-se à função de professor e a atividade de pesquisa a do cientista pesquisador, a atividade de extensão parece carecer de uma determinação profissional. É justamente por esta carência que se costuma dizer que o tripé que fundamenta a instituição universitária está “capenga”. Como, então, poderíamos explicar esse ser-para-a-capenguice, essa condição ontológica precária de nossas universidades?

Se a São Tomás de Aquino e outros filósofos de sua época colocava-se o problema da trindade, isto é, de explicar como há um só Deus em três pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo), ao mesmo tempo iguais e distintas, a nós cabe pensar como, em uma única figura, viabilizaremos três e suas respectivas funções e atividades. O problema da indeterminação de uma figura profissional responsável pelas atividades de extensão poderá ser trabalhado no sentido não de uma resolução, mas de uma atualização do modo como temos nos relacionado com ele, quando as outras duas se vejam uma na outra e, a partir disso, assumam ou reconheçam que a Universidade também tem uma função que não se encerra em si mesma, nos limites da sala de aula ou dos laboratórios.

A articulação entre ensino, pesquisa e extensão, que dá sustentação ao conceito de “universidade” depende, portanto, da existência desse ser-educador trino. E esse é o desafio da docência universitária. De nada adianta que o professor ensine, transmita um conhecimento apenas no sentido de sua reprodução, para que seus alunos apenas se apropriem acriticamente desse conhecimento, de modo a ter só mais um conteúdo em suas cabeças que, posteriormente, será sobreposto por outros e logo esquecido. Da mesma maneira, de nada adianta que o pesquisador ou cientista produza um conhecimento cujo único objetivo seja a produção de novos conhecimentos ou “papers”. O objetivo não deve ser apenas o conhecimento por ele mesmo, mas o que ele pode produzir de novo em nossas vidas.

Portanto, o conceito de “universidade” só subsiste se a apropriação e produção do conhecimento seja pensada a partir da articulação ensino-pesquisa-extensão e desse ser terrestre trino docente-pesquisador-extensionista. A apropriação e produção deixa de se restringir a sala de aula ou a laboratórios, e passa a ser pensada no sentido de uma apropriação e produção social mais ampla, fazendo com que o conhecimento tenha uma relevância social maior do que as dos índices de citações de uma publicação científica em outra.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Estado de exceção permanente


A partir da publicação de um texto de Bia Barbosa na “Carta Maior”, em 18 de julho deste ano, intitulado “Brasil forjado na ditadura representa Estado de exceção permanente”, que estava cobrindo a realização de um seminário em São Paulo que tratava do tema, o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, em 24 de julho publicou no mesmo sítio um artigo intitulado “Estado de Exceção no Brasil?”, questionando e divergindo das conclusões dos participantes daquele seminário. Depois disso se seguiram outras publicações em blogs pessoais, cito dois, ambos publicados em 28 de julho. A primeira de Bruno Cava, “Estado de exceção e esquerdismo”, que a meu ver se aproxima mais da perspectiva de Tarso Genro, afirmando que os esquerdistas fazem um uso indigente das teorias do estado de exceção. A segunda, de Hugo Albuquerque, “A Polêmica de Tarso Genro, Estado de Exceção e Democracia”, apesar de não se opor radicalmente as outras duas, afasta-se tanto da perspectiva de Tarso quanto da dos “esquerdistas”, afirmando que ambos cultivam uma fé na oposição entre regra e exceção, sendo que para Albuquerque “regra e exceção sempre coabitaram do mesmo modo”, pois “o Estado de Direito implica na existência de uma exceção latente – e isso não tem nada a ver, necessariamente, com a Ditadura Militar”.
Na edição de agosto da revista Cult há um dossiê, “A insurreição que virá”, que trás alguns artigos (dois deles estou publicando aqui) sobre “o novo momento da anarquia, o renascimento do feminismo e a memória da guerrilha brasileira”. Um desses artigos, reproduzido logo abaixo, é de Edson Teles, um dos participantes do seminário cuja cobertura deu origem ao texto de Bia Barbosa. Foi a partir desse artigo que fui procurar outros elementos e vozes dissonantes para um tema de pouca visibilidade nos nossos meios de comunicação. Aqui não se trata de afirmar em definitivo uma posição ou tomar o partido de alguém, mas de procurar se inserir dentro dessa questão e entende-la minimamente antes de tirar conclusões ou levantar bandeiras. Apesar disso, tendo a me aproximar mais da análise de Albuquerque, pois o fato de estarmos vivendo em um Estado Democrático de Direito não implica que em alguns casos e momentos ele também não seja de Exceção. No entanto, isso não nos permite assemelha-lo a uma ditadura, ou afirmar que o momento que vivemos é apenas a efetivação de mais uma etapa do projeto forjado pelo mesmo grupo ou classe social que forjou a ditadura, como se não houvesse ocorrido nenhuma resistência, rupturas e/ou transformações em relação a essa lógica de poder. Enfim. Segue o artigo de Edson Teles, cujo título dá nome a esta postagem.




A ação transformadora passa pela resistência a uma prática de governo fundamentada no mercado e autorizada pela terapia das carências da população

Edson Teles*


A democracia brasileira constitui-se durante uma transição fundamentada em consenso obtido via acordos das velhas oligarquias política e econômica com os novos atores surgidos durante o processo. Iniciada ainda em 1974, com a chamada “abertura lenta, gradual e segura”, seguiu até a promulgação da Constituição de 1988, perfazendo o longo período de 14 anos. O prolongamento da transição indicou o controle para garantir que o novo regime não surgisse por meio de ruptura contundente com a ditadura. A lógica do processo foi a de produção da governabilidade estável, mantendo os conflitos sob o manto da pacificação e da reconciliação. Esse novo modo de governo, consensual, teria como estrutura central o paradigma do estado de exceção.
Há três momentos históricos da transição que nos permitem visualizar o início dessa lógica: a Lei de Anistia de 1979; a eleição do primeiro presidente civil via Colégio Eleitoral; e a Constituição de 1988. São momentos simbólicos da democracia e possuem, entre eles, ao menos duas características em comum. Por um lado, configuram-se como saídas negociadas em lugares privados dentro do Congresso e dos palácios de governo, silenciando ações dos movimentos sociais e das lutas populares. Soma-se a isso, como segunda característica, o fato de anunciarem saídas para dilemas políticos por meio da instituição de estados de exceção, momentos nos quais o ordenamento jurídico é suspenso, por algum instrumento interno às leis, em favor da “superação” de circunstâncias que poderiam gerar alguma instabilidade ao processo político.
Em 1979, a campanha pela anistia gerou uma pressão popular e se configurou como o primeiro movimento social a fazer uso do discurso dos direitos humanos no país. Contudo, o governo militar do general Figueiredo impôs uma lei ambígua, a qual viria a tornar-se, com confirmação do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010, o marco inaugural da impunidade acordada. A democracia nasceria sob a insígnia de um estado de exceção, pois ao invés de seguir as leis do país e os tratados internacionais aceitos e assinados, preferiu suspender tais direitos e apostar na não punição dos criminosos do Estado ditatorial como parte do acordo consensual.
Próximo ao fim da ditadura, a sociedade brasileira se mobilizou no maior movimento popular da história do país, conhecido por “Diretas Já”. Milhões de pessoas, em comícios e passeatas, exigiram a passagem democrática de um regime de violência para o Estado de Direito. Novamente prevaleceu a negociata. Ao final, tomou posse como presidente, devido à precoce morte de Tancredo Neves, o ex-líder do partido do governo militar no período da aprovação da Lei de Anistia, José Sarney. O governo civil foi inaugurado pela exceção à regra democrática. Com o verniz da legitimidade de um Congresso com vários partidos, autoriza-se o silenciar da luta política através de eleição indireta via Colégio Eleitoral.
No Congresso constituinte, eleito em 1986, houve uma significativa mobilização dos mais variados movimentos sociais. Frutos dessas ações surgiram direitos considerados avançados (trabalhista, do índio, da mulher, do adolescente etc.). Entretanto, alguns aspectos da nova Constituição pouco foram alterados em relação àquela outorgada pela ditadura em 1969, especialmente, as questões referentes à propriedade da terra, aos meios de comunicação e às relações civis-militares. Neste último item, para citar um exemplo, a Constituição incluiu o artigo 142, sobre a ingerência militar nos assuntos civis: “As Forças Armadas destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Em uma democracia, o poder não pode ser garantido por quem empunha armas, sob o risco de vivermos o fantasma constante de um golpe de Estado legal, aos moldes do ocorrido no Paraguai.
Práticas dos governos democráticos, tais como: a impunidade gerada pela Lei de Anistia; a gestão do Estado com medidas provisórias; o trato do sofrimento social através de ações administrativas sem inclusão na lei (por exemplo, bolsa família); a tortura nas instituições de segurança e punição; a presença do Exército nas periferias de grandes capitais; o desrespeito às normas de uso público de verbas para a Copa do Mundo; um dos maiores índices de homicídios por parte da polícia; e a ausência e o silenciar dos movimentos sociais nas decisões do Estado, são exemplos da transformação da exceção em regra no Estado de Direito.
Na lógica da governabilidade, realiza-se a conta do que é provável, compondo com as forças mais poderosas e fixando uma média considerada possível, além da qual praticamente nada será permitido. No cálculo da política de Estado, os restos são computados, mas possuem um valor diferenciado, ora sendo importantes para dar vazão às ações reivindicatórias, mas, por outras vezes, sendo manipulados para autorizar o estado de exceção com o qual o governo imporá suas decisões. A política do possível cria um consenso cujo resultado é o bloqueio dos restos resultantes do cálculo, notadamente os movimentos de resistência às políticas de Estado.
Inaugurou-se uma democracia social cuja herança das injustiças e carências do passado (sofremos ditaduras, escravidão, extermínio de índios, problemas crônicos nas áreas de saúde, educação, alimentação etc.) justifica a adoção de medidas necessárias e terapêuticas. Sob a promessa de desfazer os erros cometidos (sempre em outro governo, outro Estado, outra história) e diminuir o sofrimento social, autoriza-se o acionamento de medidas emergenciais que dispensam os procedimentos democráticos. Tais medidas não são ilegais e se encontram dentro do ordenamento. É uma espécie de ato ilícito autorizado pelo lícito.
O Estado participativo estabelece um novo modo de agir que vem substituindo o movimento social independente do Estado de Direito, bem como as formas tradicionais da democracia representativa. Em lugar da transformação social, os novos atores são instados a fomentar, no teatro de fabricação dos resultados, a diminuição do sofrimento através de uma mudança contabilizada nos índices de desenvolvimento da humanidade. Na nova forma da política, os instrumentos e a racionalidade da atividade terapêutica substituem a possibilidade de ruptura por um fazer planejado enquanto artefato de controle da ação. Instauram-se, assim, novas soluções para os problemas de miséria e desigualdade sem desfazer os compromissos com os interesses de mercado.
Encontramo-nos diante de uma armadilha: evoluímos para a construção de um regime de registro das mais variadas práticas em direitos, legalizando os conflitos e as relações sociais; por outro lado, essa mesma disciplinarização da vida por meio das leis tende a estabelecer uma judicialização da política. Tal judicialização introduz um elemento autoritário nas democracias contemporâneas: o estado de exceção e a consequente suspensão dos direitos por meio de um mecanismo interno à própria lei. E isso em nome da garantia de direitos e do desenvolvimento.
Não se trata de dizer contra os direitos, pois sabemos que boa parte das conquistas políticas e civis advém de definições que se efetivaram em acontecimentos jurídicos, possibilitando certa limitação na ação de violação da dignidade humana por parte do Estado. Trata-se de uma crítica radical com o intuito de sair da obviedade e da superficialidade dos discursos, desnaturalizando pretensas políticas da verdade.
Parece-nos que a ação transformadora passa pela resistência ao estado de exceção permanente, vinculado a uma prática de governo fundamentada na lógica de mercado e autorizada pela terapia das carências da população. Lutar contra a condição miserável exige a consciência de que a necessidade de diminuição do sofrimento social tem autorizado modos autoritários de ação política. Seja nos poderes instituídos no Estado, nas universidades, nas políticas sociais, no valor coletivo da terra ou no desenvolvimento da economia, o governo da vida tem se realizado por meio de um estado de exceção permanente e resistir a ele seria um passo importante para os movimentos sociais.

*Edson Teles é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Artigo publicado na revista Cult, de agosto de 2012.

A revolta de todos os dia

Não há por que esperar um clarão, a revolução, o apocalipse; a catástrofe é o que já se apresenta


Não há por que participar neste ou naquele impasse de extremaesquerda; Jean Paul Belmondo enfrenta o dilema em O Demônio das 11 Horas (1965), de Jean Luc Godard
COMITÊ INVISÍVEL

Uma insurreição: não somos sequer capazes de ver por onde isso começa. Sessenta anos de pacificação, de suspensão dos tumultos históricos, sessenta anos de uma anestesia democrática e da gestão dos acontecimentos enfraqueceram em nós uma certa percepção abrupta do real, o sentido guerrilheiro da guerra em curso. Para começar, é essa percepção que é preciso ser recuperada.
Não há por que se indignar com o fato de há mais de cinco anos serem aplicadas leis tão notoriamente inconstitucionais quanto a atual Lei de Segurança. É inútil protestar legalmente contra a implosão completa do quadro legal. É necessário que nos organizemos de modo consequente.
Não há por que participar deste ou daquele coletivo cidadão, neste ou naquele impasse de extrema-esquerda, na última farsa associativa. Todas as organizações que pretendem contestar a ordem presente têm, elas mesmas, um pouco mais folcloricamente, a forma, os costumes e a linguagem de nossos governantes, o ligeiro tremer de terror que nunca os abandona. Porque governar nunca foi outra coisa senão repelir por mil subterfúgios o momento em que a multidão se revoltará e todo o ato de governança nada mais é que uma forma de não perder o controle da população.
Nós partimos de um ponto de extremo isolamento, de extrema impotência. Tudo está a ser construído no que diz respeito a um processo insurrecional. Nada parece menos provável do que uma insurreição, mas nada é mais necessário.


Agarrar-se ao que se sente ser a verdade. Partir daí

Um encontro, uma descoberta, um vasto movimento de greve, um tremor de terra: todo o acontecimento produz uma verdade, ao alterar a nossa maneira de estar no mundo. Inversamente, uma constatação à qual ficamos indiferentes, que não nos modifica, que não nos compromete, ainda não merece o nome de verdade. Existe em cada gesto, em cada prática, em cada relação, em cada situação, uma verdade subjacente. O hábito é o de iludir, de gerir, o que produz a desorientação característica de grande parte das pessoas desta época. Na realidade, tudo se relaciona com tudo. A impressão de viver numa mentira ainda é uma verdade. Trata-se de não a largar, de partir daí mesmo.
Uma verdade não é uma visão do mundo, mas o que nos mantém ligados a ele de forma irredutível. Uma verdade não é algo que se detenha, mas algo que nos move. Ela me faz e me desfaz, ela me constitui e me destitui como indivíduo, me afasta de muita coisa e me torna parecido com aqueles que a experimentam.
O ser isolado que a ela se agarra encontra fatalmente alguns dos seus semelhantes. Na realidade, todo o processo insurrecional parte duma verdade à qual não se cede. Viu-se em Hamburgo, no decorrer dos anos 1980, que um punhado de habitantes duma casa ocupada decidiu que, daí por diante, seria preciso passar sobre os seus cadáveres para os expulsar. Houve um bairro cercado de tanques e helicópteros, dias de luta de rua, manifestações gigantescas – e, no final, uma prefeitura que capitula. Georges Guingouin, o “primeiro resistente da França”, só tinha como ponto de partida, em 1940, a certeza da sua recusa da ocupação. Para o partido comunista, não era mais do que “um louco que vive nos bosques”; até que passaram a ser 20 mil loucos a viver nos bosques e a libertar a cidade de Limoges.


Não recuar face ao que toda amizade contém de político

Fomos habituados a uma ideia neutra de amizade, como pura afeição sem consequência. Mas toda a afinidade é afinidade no seio de uma verdade comum. Cada encontro é um encontro noseio de uma afirmação comum, mesmo que seja a da destruição. Não nos ligamos inocentemente, numa época em que ter apego por algo e não desistir desse algo conduz frequentemente ao desemprego, em que é preciso mentir para trabalhar, e trabalhar, depois, para conservar os meios da mentira. Seres que, partindo da física quântica, prometessem a si próprios retirar dela todas as consequências, em todas as esferas, não se ligariam de uma forma menos política do que os camaradas que lutam contra uma multinacional agroalimentar. Eles seriam levados, mais cedo ou mais tarde, à deserção e ao combate. Os precursores do movimento operário tinham o atelier e, depois, a fábrica para se encontrar. Tinham a greve para se medir e desmascarar os covardes. Tinham o rendimento salarial, que opõe o partido do Capital ao partido do Trabalho, para traçar as solidariedades e as frentes de luta em escala mundial.  Nós temos a totalidade do espaço social para nos encontrarmos. Nós temos as condutas quotidianas de insubmissão para nos medirmos e desmascararmos os covardes. Nós temos a hostilidade a esta civilização para traçar as solidariedades e as frentes de luta em escala mundial.


Não esperar nada das organizações. Desconfiar de todas existentes, e, sobretudo, evitar tornar-se uma

Não são raras as vezes em que, no decorrer de uma desfiliação, cruzamos com as organizações – políticas, sindicais, humanitárias, associativas, etc. Acontece até encontrarmos alguns seres sinceros, mas desesperados, ou entusiastas, mas matreiros.
A atração das organizações prende-se com a sua aparente consistência – elas têm uma história, uma sede, um nome, meios, um chefe, uma estratégia e um discurso. Não deixam, no entanto, de ser arquiteturas vazias, que se esforçam por repovoar o respeito devido às suas origens heróicas. Em todas as coisas, como em cada um dos seus escalões, tratam, antes de tudo, da sua sobrevivência enquanto organizações. As suas repetidas traições alienaram, portanto, não poucas vezes, a ligação à sua própria base. E é por isso que por vezes encontramos essas pessoas estimáveis. Mas a promessa contida no encontro apenas se poderá realizar fora da organização e, necessariamente, contra ela.
Os “meios” são bem mais temíveis, com a sua textura maleável, os seus mexericos e as suas hierarquias informais. Todos os “meios” são de fugir. Cada um está como que encarregado da neutralização de uma verdade. Os círculos literários existem para reprimir a evidência dos escritos. As cenas libertárias, para reprimir a evidência da ação direta. Os meios acadêmicos existem para reter o que as suas pesquisas implicam para um grande número de pessoas. Os meios desportivos, para conter nos seus ginásios as diferentes formas de vida, que deveriam criar diferentes formas de desporto. São especialmente de fugir os meios culturais e os meios militantes. Ambos são antecâmaras da morte onde, tradicionalmente, vêm parar todos os desejos de revolução. A missão dos meios culturais é detectar as intensidades emergentes e, pela sua exposição, subtrair o sentido do que se faz; a missão dos meios militantes é subtrair a energia do fazer.
Todos os meios são contrarrevolucionários, pois o seu único objetivo é o de preservar o seu triste conforto.


Comitê Invisível

é um coletivo anônimo, em atuação na França. Este texto faz parte do livro L’Insurrection Qui Vient(A insurreição que chega), um ensaio-manifesto publicado em 2007 que anuncia uma eminente derrocada da cultura capitalista. Versões integrais do livro em francês, inglês, italiano, português, grego e espanhol podem ser encontradas no site do C.I.: www.bloom0101.org

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O país é de Fidel, mas os jornalistas estão a serviço do proletariado: uma interessante noção de liberdade.

"Quando perguntei a um influente jornalista cubano se lá existe liberdade de imprensa, ele deu uma gargalhada e respondeu: 'Claro que não'. E completou, com naturalidade: 'Liberdade de imprensa é apenas um eufemismo burguês. Só um idiota não é capaz de ver que a imprensa está sempre a serviço de quem detém o poder. E aqui em Cuba quem detém o poder é o proletariado. Estamos todos os jornalistas cubanos, portanto, a serviço do proletariado'" (MORAIS, F. A Ilha. Um repórter brasileiro no país de Fidel Castro. Editora Alfa-Omega, São Paulo: 1977, p. 73).


A imprensa está sempre a serviço de quem detém o poder? Concordo. Esse não é o problema. O problema é se ainda hoje ela diz estar a serviço do proletariado em um país governado por uma única pessoa ou por um único partido que detém o poder a mais de 50 anos. Só um cretino ainda crê que o proletariado detém o poder em Cuba.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Muito além do Facebook

Em 2011 um estudante de direito de Viena processou o Facebook (FB) por violação de dados, por armazenar informações que, segundo o mesmo, deveriam ser completamente deletadas, mas que, segundo o FB, são apenas “removidas” do ambiente virtual da rede, mas não deletadas dos servidores.  O mesmo estudante criou um site chamado “Europe versus Facebook”, onde é possível acompanhar o andamento do processo. Há também um vídeo no YouTube explicando o caso. Existe um outro vídeo que, apesar de apresentar informações verdadeiras, acaba abordando a questão de um ponto de vista exageradamente conspiratório, reduzindo um conjunto complexo de fatores e relações de interesse político e econômico que resultaram na criação e popularização do FB a um plano conspiratório arquitetado, segundo o vídeo, por três cabeças, a saber, ‘uma estrela midiática [Mark Zuckerberg], um filósofo o futurista que quer destruir o mundo real [PeterThiel] e um terceiro investidor envolvido diretamente com a CIA [James Breyer]’. O vídeo parece ter se inspirado em um artigo (tradução) de Tom Hodgkinson, publicado no The Guardian em 2008. No entanto, ao contrário desse artigo, o vídeo apresenta as informações de maneira muito mais resumida e simplista.
Ao que me consta, Peter Thiel, apesar de ser graduado em filosofia pela universidade de Stanford, é reconhecido mais como um gênio investidor do que como filósofo. Além disso, Thiel é membro do The Vanguard Project – sob direção de Rod D. Martin – um esforço para construção de uma plataforma tecnológica e de uma infra-estrutura organizacional que viabilize o ativismo dos defensores da liberdade (sic). Mas há uma entrevista interessante de Thiel onde ele expõe algumas das razões “filosóficas” que orientam seus investimentos, há também um artigo, "A educação de um libertário", onde afirma que “Em face dessas realidades, alguém poderia se desesperar vendo o limitado horizonte do mundo da política. Eu não me desespero porque já não acredito mais que a política abarque todas as possibilidades futuras do nosso mundo. No nosso tempo, a grande tarefa para os libertários é encontrar uma escapatória da política de todas as formas – da totalitária, fundamentalista e catastrófica chamada ‘democracia social’”.
       Thiel foi co-fundador do PayPal e nos primórdios do FB, quando este já gozava de certa popularidade, investiu meio milhão de dólares na empreitada tecnológica de Zuckerberg. Na entrevista citada acima, fica mais claro porque Thiel não crê que a política abarque todos os futuros possíveis do nosso mundo. Se Thiel realmente não crê nisso, então quais são as bases da sua visão libertarian de mundo? Como disse anteriormente, Thiel é mais reconhecido como investidor do que como filósofo; desse modo, creio que a base e motivação do seu libertarismo é essencialmente econômica. Apesar do papo filosófico, todo o papo sobre liberdade, resume-se apenas a liberdade para ganhar dinheiro do jeito que bem entender, conforme as “necessidades” do mercado. A política e a filosofia, apesar de serem indispensáveis para a realização desse projeto, não são propriamente a preocupação central desse grupo de investidores de risco. Nesse sentido compreende-se porque a política se apresenta para ele como um mundo de horizonte limitado. Quando o assunto é livre mercado, o debate político parece se colocar sempre como um entrave para a ampliação dos horizontes e dos lucros futuros possíveis do nosso mundo. A expressão máxima dessa liberdade se da na prática do consumo, e veremos mais adiante os limites dessa concepção “libertária”, que é bem resumida na fala de uma personagem do filme Cronicamente Inviável, para a qual “a liberdade de consumo é a única que deu certo até hoje”.
            Na entrevista supracitada, quando o entrevistador pergunta a Thiel como ele se envolveu no projeto do PayPal, este responde que a ideia surgiu quando ele e alguns amigos queriam começar uma empresa que iria mudar o mundo (horizonte político) e mudar as moedas, criando uma nova moeda privada (horizonte econômico). Quando perguntado sobre a possibilidade de o PayPal ser, em breve, totalmente internacionalizado, ele responde que apesar de haver regulamentos distintos em cada país acerca desse tipo de transação, o mundo tem se tornado cada vez mais globalizado nos últimos 8, 9 anos, desde o lançamento do serviço. Vê-se porque Thiel não deixa limitar o seu horizonte ao mundo da política. Na atual conjuntura a política é, de modo geral, trabalho para políticos profissionais, financiados por investidores como Thiel para abrirem caminho para a realização dos seus investimentos.
Não penso que Thiel seja um filósofo. Assim como todos esses aventureiros do capital de risco, para quem a economia não passa de ciência do lucro, Thiel pensa que a política não abarca todos os futuros possíveis de nosso mundo, pois nem todos esses futuros possíveis serão necessariamente desejáveis de um ponto de vista político. Somente em uma economia concebida como ciência do lucro qualquer futuro possível é desejável... Claro, desde que seja bom para os negócios.
Como se pretende mostrar mais adiante, esse capitalismo “libertário” pode estar, em certo sentido, muito próximo de um novo tipo de fascismo que, conforme Michel Onfray, não é mais aquele “fascismo de leão”, nacionalista e racista, mas um “fascismo de raposa” que

tira as lições do passado e supõe arranjos formais, revoluções de significantes. Porque o liberalismo é plástico: aí está, de resto, a sua força. O golpe de Estado não é popular: visível demais, indefensável demais nessas horas de midiatização planetária e de pleno poder das imagens. Pega mal... Donde a rejeição da violência do leão maquiavélico em benefício da raposa pertencente ao mesmo bestiário, mas célebre por sua astúcia, sua velhacaria, sua vigarice. O leão recorre à potência do exército, a raposa à força dos arranjos discretos (2010, p.128).

Mesmo levando em conta o que dizem os adeptos dessa teoria, a meu ver a preocupação central dele não é política (libertarian), afinal, ele não se deixa limitar por esse horizonte, a questão política é apenas um meio de viabilizar os negócios que, quando parar de render bons lucros ou mais dinheiro, ele pulará fora, para outro negócio, outro nicho de mercado. É mais um daqueles “espertos ao contrário” que para manter a imagem de bom moço tem um discurso, mas a prática implica justamente o contrário do que prega, não a liberdade, mas apenas mais uma nova forma de liberdade tutelada, vigiada e consumível.
            No entanto, não creio que Thiel queira destruir o mundo real (pelo menos não nos termos e no tom do vídeo-documentário supracitado), pois é nesse mundo que ele poderá desfrutar daquilo que lucrou com o mundo “virtual”. Além do mais, não creio que tenha investido tanto dinheiro no FB motivado pela ideia de criar uma experiência de manipulação global em um sentido orwelliano, mas sim uma plataforma tecnológica que viabilize o ativismo dos defensores da “liberdade” e, ao mesmo tempo e principalmente, encha seu bolso de dinheiro. O FB pode ser utilizado tanto na manipulação e ativismo de direita quanto de esquerda. Não que o FB não possa ser ou não é usado para esse fim, mas não creio que tenha sido pensado e idealizado com esse objetivo, apesar de ter esse potencial e de poder ser utilizado dessa maneira.
Um indício de que Thiel está, em último caso, mais interessado no potencial financeiro do FB do que em possíveis experimentos de engenharia social é o fato de o mesmo ter vendido recentemente a maioria de suas ações da rede social (ações estas que já estão em queda). Se não está dando mais o retorno financeiro esperado, não há projeto ou motivações políticas para uma manipulação global que se sustente. Não se trata de dizer que há uma conspiração nesse sentido, algumas ações podem ser calculadas, mas não é possível calcular tudo, outras situações vão se constituindo de maneira acidental, aleatória ou imprevista. Thiel pode não ter nenhuma dessas intenções, mas a meu ver essas são as conseqüências dos negócios e das práticas financeiras que ele e outros investidores realizam.
O “fascismo” não tem mais essa cara:
Ao contrário, agora a nova cara do fascismo, desse microfascismo de raposa, é essa:
Em algumas ocasiões esta imagem costuma vir acompanhada com os seguintes dizeres: “sorria, você está sendo filmado”. Simpático, não?
            Em 2005, James Breyer, presidente da firma de capital de risco Accel Partners, empresa que detém 11% do FB, investiu 12,7 milhões de dólares na rede social de Zuckerberg. Breyer, assim como Gilman Louie, foi presidente da associação comercial que representa a indústria de capital de risco nos EUA, a National Venture Capital Association (NVCA), e atuaram juntos no conselho administrativo da associação.
De fato, tanto Louie quanto Breyer não estão acima de qualquer suspeita. Louie já foi membro do grupo de assessoramento técnico do comitê de inteligência do senado dos EUA, bem como da comissão nacional de revisão de programas de pesquisa e desenvolvimento da comunidade de inteligência dos EUA, recebendo diversos prêmios pelos serviços prestados. Em 1999 foi escolhido pela CIA para dirigir a In-Q-Tel que, segundo o próprio Louie, é um fundo de investimento estratégico criado para ajudar a melhorar a segurança nacional, ligando a CIA e a comunidade de inteligência dos EUA com empresas de capital de risco que investem no desenvolvimento de novas tecnologias. Segundo Louie, essa parceria público-privada surgiu da necessidade de transferir tecnologia da informação para a CIA mais rapidamente do que os processos de aquisição tradicionais. Desse modo, como a CIA não estava conseguindo mais acompanhar o processo de desenvolvimento tecnológico, isto é, como o Estado estava ficando para trás, resolveram estabelecer um fundo de capital de risco para alimentar empresas de alta tecnologia. A partir desse fundo investe-se em empresas que desenvolvem tecnologia (tais como FB) do interesse das agências de inteligência norte-americanas.
Desse modo, há uma complexa rede de empresas de tecnologia e de investidores de capital de risco que mantêm relações com a In-Q-Tel, algumas de maneira indireta, todos trabalhando para o governo dos EUA, em troca de alguns milhões de dólares, claro. O FB de Zuckerberg é apenas mais uma dessas empresas a receber recursos desse fundo ou através de investidores ligados a ele, investimento que certamente tem sido bem sucedido. Tanto Thiel quanto Breyer mantiveram e mantêm relações direta ou indiretamente com essas agências e fundo de investimento, pois atualmente esse é um bom nicho de mercado. Eles trabalham para o governo, utilizando recursos de um fundo de investimento público, aplicando-o nas empresas nas quais são diretores, lucrando duplamente com o negócio. Aliando o útil ao agradável, desenvolvem tecnologia para as agencias de inteligência, para o Estado e governo, ao passo que essas financiam o desenvolvimento dessa tecnologia, esses investidores as utilizam também com um fim comercial, peneirando as informações e vendendo-as para empresas e agencias de publicidade. Não há dúvida de que são gênios na arte de ganhar dinheiro.
O Big Brother não é uma pessoa, ou três cabeças que querem manipular/ dominar o mundo, mas uma rede complexa de pessoas e instituições, rede esta a qual, por mais distante e indiferente que possa parecer, também fazemos parte. The Big Brother is YOU! Não é possível compreender o que está passando ou acontecendo atualmente a partir de uma visão estritamente orwelliana do mundo. Nossa realidade é muito mais sofisticada e complexa do que supunha Orwell. O estado e as empresas espiam os cidadãos e os consumidores (articulação do horizonte político com o econômico-financeiro). Os cidadãos também espiam algumas atividades (as mais públicas) dos políticos e dos empresários. E agora, com o WikiLeaks, já temos tido algum acesso a informações sigilosas, mas que, ao contrário do que acontece nas redes sociais, onde fornecemos informações pessoais voluntariamente, o vazamento dessas informações, por serem altamente sigilosas, colocou a corda no pescoço de Assange.
Desse modo, as redes sociais, e-mails ou quaisquer serviços oferecidos por empresas como o Google, não têm por objetivo apenas “aproximar as pessoas”. Como o Gmail direciona publicidade especificamente sobre temas e assuntos dos meus e-mails? “Este anúncio é baseado em e-mails de sua caixa de correio. Acesse o Gerenciador de preferências de anúncios do Google para saber mais, bloquear anunciantes específicos ou desativar anúncios personalizados”. No entanto, não há a opção de desativar os anúncios, apenas de desativar anúncios personalizados, o que é muito pior, pois acaba enviando todo tipo de anúncio para a página inicial do Gmail, e não aqueles que dizem respeito ao conteúdo dos meus e-mails.
A tecnologia desenvolvida para isso permite a construção de vários perfis de usuários, um prato cheio para qualquer agência de segurança, e é por isso que estão investindo pesado nessas empresas que, como disse, lucram duplamente com isso. No entanto, creio que a tendência é não haver (isso se já não há) mais um centro de inteligência com acesso privilegiado a informação. As informações estão cada vez mais acessíveis a todo mundo, basta saber acessá-la (como tem feito o wikileaks). Hoje em dia todos somos potenciais agentes de espionagem. A questão não é deixar ou não deixar de utilizar esses serviços, mas de pensar o que estamos fazendo de nós mesmos em relação a isso, de que maneira estamos vivendo isso e se é possível utilizar esses recursos de maneira tal a não alimentar essa lógica microfascista.

Outra lição magistral, a de La Boétie: ele afirma em seu Discurso da servidão voluntária que todo poder se exerce com o assentimento daqueles sobre os quais se manifesta. Esse microfascismo não vem de cima, portanto, mas se irradia ao modo rizômico com atravessadores – potencialmente, cada um de nós... – que se tornam condutores, no sentido elétrico, dessa energia ruim. Essa constatação constitui o primeiro tempo necessário para uma lógica de resistência. Saber onde está a alienação, como ela funciona, de onde provém, permite encarar a continuação com otimismo (ONFRAY, 2010, p.128).

          Talvez tudo isso possa parecer muito estranho, afinal, não temos nenhuma força ou poder que nos obrigue a isso, agimos assim voluntariamente, já não há mais um governo opressor exercendo seu poder sobre nós, não há mais ditadura, o fascismo e o estado policial sucumbiram há muitos anos. No entanto, o “fim” desses estados totalitários ou governos ditatoriais se devem mais as lutas sociais ou ao fato de os mesmos já não serem mais necessários? O desenvolvimento tecnológico na área da comunicação e da computação se confunde, em certo sentido, com o desenvolvimento de novas tecnologias do poder e de novas técnicas de governo, ou melhor, de governamento. As ditaduras leoninas se tornaram ou vem se tornando cada vez mais obsoletas. Vivemos “livremente”, pois o uso da força bruta ou o exercício explícito desse poder de leão já não é mais tão necessário (isso não quer dizer que não possa voltar a ser).  A raposa sabe ser mais sutil.

Foi uma das coisas mais horríveis que o castrismo conseguiu: romper os laços de amizade, fazer com que desconfiássemos dos nossos melhores amigos, transformá-los em informantes, em tiras. (...) O mais dramático de tudo foi que muitas pessoas se tornaram vítimas da chantagem e do próprio sistema, até perderem sua própria condição humana (ARENAS, 1995).

Em muitos regimes totalitários, uma das estratégias das organizações de inteligência e polícia secreta era a de recrutar informadores civis. A STASI, polícia secreta da Alemanha Oriental é um bom exemplo da utilização desse método de espionagem, criando uma grande rede social de informantes civis. Se antes o recrutamento se dava em um ambiente de tensão e repressão, onde muitos cidadãos se viam obrigados a espionar seus amigos, atualmente as estratégias de recrutamento são mais sofisticadas.  A CIA tem utilizado o facebook como centro de recrutamento, criando até um vídeo institucional para a divulgação da campanha intitulada “CIA Clandestine Service Ad”. Não há nada por trás da cortina, está tudo aí, basta abrir os olhos e ver.
Em relação ao caso ou exemplo cubano há o livro do qual extraí o trecho citado anteriormente, uma autobiogradia de Reinaldo Arenas, que inspirou o filme Before Night Falls (Antes do anoitecer), com Javier Bardem. Em relação ao caso alemão há outro filme, A vida dos outros, que busca retratar como a polícia secreta monitorava a vida da população através das informações prestadas pela própria população. Nos dois casos o alvo da perseguição e vigilância são escritores. No entanto, no caso de Arenas, a sua contrariedade em relação ao regime castrista era mais visível e declarada, “justificando” a perseguição sofrida; no caso do personagem do filme A vida dos outros, Georg Dreyman é um dramaturgo que nunca contestou o governo e o regime no qual vivia, mas mesmo assim ele e sua namorada acabam virando objeto de vigilância e perseguição, sendo a namorada de Dreyman vítima de chantagem em troca de favores sexuais.
Todas essas práticas que marcaram nossa história e que normalmente são relacionadas ao passado e a regimes políticos autoritários já inexistentes ainda estão, na sua sutileza de raposa, muito presentes na nossa atualidade. Aqui novamente a questão não é manter ou não manter relação com esses serviços, mas que tipo de relação temos, podemos e/ou queremos ter com eles, e não se deixar fisgar e/ou cooptar acriticamente por essa lógica de poder.
Voltando à questão da liberdade, vimos que a criação dessas plataformas tecnológicas, de toda essa infra-estrutura organizacional que pretende viabilizar o ativismo dos defensores da “liberdade” tais como Thiel e cia, não é assim tão libertária. Aqui não é possível falar em Liberdade de modo geral, pois ela possui diversas acepções, e não um sentido geral, universal ou único. Por mais paradoxal que possa parecer também é possível falar de uma liberdade fascista. Assim, o conceito de Liberdade é compreendido de diversas maneiras, entre diversas correntes políticas e de pensamento, tais como os neoconservadores libertarians como Thiel, anarquistas de diversas vertentes, socialistas, comunistas etc. Na década de 30, o General Góes Monteiro, ministro da guerra de Getúlio Vargas, admirador do nazi-fascismo, publicou um artigo no jornal O Estado de São Paulo onde afirmava que

Toda a liberdade concedida contra os interesses do Estado será um foco de onde podem brotar germens perigosos. Toda liberdade para fortalecer a segurança do Estado é um bem para a coletividade que deve viver sob permanente equilíbrio social – o que só a justiça incorruptível alcançará, guiada pelo senso das nossas realidades e necessidades (Gen. Góes Monteiro apud Moura, 1933, p. 7).

         Agora experimentemos fazer um pequeno jogo de palavras, substituindo no texto acima a palavra “Estado” por “Mercado”, que teremos uma ideia do quão próximo pode estar o libertarianismo neoconservador de Thiel da concepção de liberdade do Gen. Góes Monteiro, a concepção de liberdade dos fundamentalistas do livre mercado da concepção de liberdade dos fundamentalistas do Estado total.
A partir do texto de Étienne de La Boétie, citado por Onfray, Discurso da servidão voluntária, e o capítulo 7 do livro Arqueologia da violência – pesquisas de antropologia política de Pierre Clastres, poderíamos abordar a questão da liberdade e de como somos levados a abrir mão dessa liberdade, do amor a liberdade para, voluntariamente, passar a desejar e amar a servidão. A relação que muitas pessoas estabelecem com as plataformas tecnológicas não é uma relação de liberdade, mas de um aprisionamento que reforça a servidão a uma determinada estratégia de poder político, isto é, aquela defendida por adeptos de projetos como o The Vanguard Project e de todos aqueles investidores ou capitalistas de risco citados anteriormente. Mas como explicar o fato de abrirmos mão voluntariamente da nossa privacidade, do nosso tempo, para nos dedicarmos a esse tipo de compartilhamento de informação e relação social? Aqui, creio, entraria outra questão complicada, a do desejo.
Essa questão do desejo e da manipulação do desejo é uma das questões centrais apontadas por Foucault em Introdução à vida não-fascista, em relação a uma arte de viver contrária a todas formas de fascismo. Sobre isso, ele levanta três questões, a saber, “Como introduzir o desejo no pensamento, no discurso, na ação?” (podemos problematizar, assim como o fez La Boétie, como o fascismo introduz certo desejo nas pessoas. Sobre isso o texto da Maria Lacerda de Moura traz um bom exemplo), “Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecida?” (aqui, claro, ele está se referindo a uma estratégia antifascista) e, por conseguinte, “Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres [e desejos] do fascismo?”.
O sucesso dessas plataformas tecnológicas, do consumo desenfreado de todos os produtos tecnológicos fabricados e com data de validade pré-determinada (a chamada obsolescência programada), a produção desse sentimento de necessidade de que “não posso viver sem isso”, não é apenas fruto, o resultado de uma estratégia política e econômica bem sucedida de moldar e deformar o desejo da população? O fato de eu desejar fazer algo, consumir um produto ou entrar em uma rede social e, “voluntariamente”, tornar públicas informações pessoais, significa que a ação decorrente desse desejo é uma ação livre? E esse desejo, é um desejo somente meu ou é um desejo coletivo?
Não há como dar conta de todas essas questões neste ou mesmo em qualquer outro momento específico. Desse modo, apenas citarei, como sugestão de leitura, um trecho da apresentação do livro A República de Platão: a boa sociedade e a deformação do desejo, de Martha Nussbaum, que discute um pouco essa questão.

Nussbaum estabelece uma discussão sobre o conflito entre liberdade de escolha e deformação do desejo em nossa democracia e em regimes não-liberais, que sustentam serem incompatíveis liberdades políticas e bem-estar humano. Nussbaum substitui a discussão filosófica platônica baseada em verdades absolutas, por outra baseada no discernimento ético, como nos ensina Aristóteles. Em suma, Nussbaum nos convida para uma reflexão sobre liberdades que se apresentam como negociáveis e como não-negociáveis, constituindo, desse modo, uma permanente tensão (2004, p. 10).

Alguns liberais parecem defender uma paradoxal concepção de liberdade (especialmente os mais radicais). Há ideia mais totalizante e autoritária do que aquela que pretende condicionar as relações sociais, políticas ou econômica, o mundo, a uma única lógica, a do livre mercado e do consumo? Liberdade de mercado não é Liberdade em geral, pois também pode engendrar outras formas de aprisionamento, servidão ou sujeição. Claro que nem todo mundo sabe ou se importa/ preocupa com isso. A questão é que podemos sempre pensar em alternativas possíveis, e não aceitar uma doutrina ou proposta política dogmaticamente, como se fosse a verdade absoluta ou o fim da história. É interessante perceber o uso político do apelo a uma pretensa autoridade científica para justificar “cientificamente” de que a concretização ou realização de um determinado padrão ou modelo político, econômico e/ou sócio-cultural representa a realização do espírito absoluto, do fim da história e do bem-estar universal.
Não é possível defender taxativamente essas visões de mundo, pois não são perfeitas, não tratam somente de verdades científicas, mas também de outras coisas, que dizem respeito também ao modo de vida que as pessoas pretendem levar, aquele que a conjuntura lhes permite ter e as brechas pelas quais é possível mudar. Penso que se há uma estratégia política na qual a esquerda, apesar de controversa, logrou algum êxito foi a de agir nas brechas, principalmente em determinados períodos históricos, no entanto, atualmente certos setores tem se fechado a diversas possibilidades de resistência e prática política, optando apenas pelo jogo de cena, pelo panelaço, pela agitação publicitária. A midiatização da política está presente nas práticas políticas mais cotidianas e infinitesimais, e não somente entre grandes partidos em período eleitoral.
A revolução cultural gramsciana defendida por alguns esquerdistas não se completará se não for aprofundada, sendo irradiada globalmente nas malhas da rede social e não apenas em um ou alguns locais privilegiados da rede, e esse trabalho passa também por um processo educativo, pensar a formação também como um trabalho sobre si mesmo e do outro, na relação entre o si e o outro, para que o modo de pensar o macro seja coerente com a prática política cotidiana, pois é ela que permitirá a realização dos objetivos macropolíticos de um determinado projeto de poder (e acredito que a estratégia da nossa esquerda hegemônica tem sido somente essa e até aí tem sido bem sucedida) ou de liberação de determinadas sujeições cotidianas que são a base das mais globais. Esse é um trabalho que já existe, mas que a esquerda da esquerda parece não conseguir compreender ou aceitar, agindo mais na lógica do jogo político da conscientização que não conscientiza nada, que termina por virar em apenas mais um método refinado de sujeição ao pensamento único, ou seja, uma prática totalitária, não libertária. Acredito que a esquerda precisa repensar sua espiritualidade de esquerda (não em um sentido religioso, mas político, ético), e não se prender a dogmas que não intensificam sua luta política, mas apenas enfraquecem-na; o que, se não a leva a inanição, a leva a cooptação política.
            Por isso acredito ser importante estar atento aos arranjos discretos da raposa, pois ela sabe muito bem como armar um circo (das eleições, das assembléias, dos conselhos deliberativos, dos sindicatos etc), fazer com que todo mundo participe, se expresse livremente, vote, fazendo depois justamente o contrário daquilo que as pessoas esperavam. E essa raposa não é somente o outro. Não é uma pessoa ou uma coisa, um paradigma político ou econômico. Não se trata tanto de ser ou não ser, mas de devir-ser. Esse devir-raposa atravessa a todos, ou seja, ela é ou pode ser cada um de nós em momentos ou práticas específicas.
Nas palavras de Foucault (2010, p. 06),

O liberalismo, o jogo: deixar as pessoas fazerem, as coisas passarem, as coisas andarem, laisser-faire, laisse-passer e laisser-aller, quer dizer, essencial e fundamentalmente, fazer de maneira que a realidade se desenvolva e vá, siga seu caminho, de acordo com as leis, os princípios e os mecanismos que são os da realidade mesma (FOUCAULT, 2009, p.62-63).

No entanto, a ação livre não se resume ou se reduz a liberdade de escolha ou de consumo. A estratégia da decisão coletiva pode não ter nada de coletivo. Aquela escolha que me faz ir até uma loja comprar um produto não se confunde, necessariamente, com o exercício da liberdade individual, pois não se trata apenas de uma escolha individual. A sutileza é que faz a diferença. Não ficar atento a elas ou estar cego a elas é ficar a mercê da história, preso não na caverna platônica, mas no teatro da democracia liberal. O pior não é não se dar conta disso ou mesmo atuar no teatro por alguma necessidade tática ou estratégica, mas defender que o teatro é a única coisa que deu certo até hoje sem jamais criticá-lo, procurando operar modificações, adaptações ou improvisações. A estratégia lúdica desse teatro liberal serve como matriz de inteligibilidade para o desenvolvimento de novos dispositivos de segurança, e não é por outra razão que os EUA e suas agências de inteligência e segurança têm dado suporte financeiro a esses investidores de risco para que incentivem e financiem a produção de tecnologia da informação. Desse modo, estou de acordo com Foucault, pois

um dispositivo de segurança só poderá funcionar bem, em todo caso aquele de que lhes falei hoje, justamente se lhe for dado certa coisa que é a liberdade, no sentido moderno [que essa palavra] adquire no século XVIII: não mais as franquias e os privilégios vinculados a uma pessoa, mas a possibilidade de movimento, de deslocamento, processo de circulação tanto das pessoas como das coisas. E é essa liberdade de circulação, no sentido lato do termo, é essa faculdade de circulação que devemos entender, penso eu, pela palavra liberdade, e compreendê-la como sendo uma das faces, um dos aspectos, uma das dimensões da implantação dos dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2009, p.63-64).

            De acordo com Foucault, a nova razão governamental é consumidora de liberdade, podendo funcionar somente se existir efetivamente certo número de liberdades pré-determinadas/fabricadas: “liberdade do mercado, liberdade do vendedor e do comprador, livre exercício do direito de propriedade, liberdade de discussão, eventualmente liberdade de expressão, etc” (id., ibid, p. 86-87).

A nova razão governamental necessita portanto de liberdade, a nova arte governamental consome liberdade. Consome liberdade, ou seja, é obrigada a produzi-la. É obrigada a produzi-la, é obrigada a organizá-la. A nova arte governamental vai se apresentar portanto como gestora da liberdade, não no sentido do imperativo “seja livre”, com a contradição imediata que esse imperativo pode trazer. Não é o “seja livre” que o liberalismo formula. O liberalismo formula simplesmente o seguinte: vou produzir o necessário para tornar você livre. (...) O liberalismo, no sentido em que eu o entendo, esse liberalismo que podemos caracterizar como a nova arte de governar formada no século XVIII, implica em seu cerne uma relação de produção/destruição [com a] liberdade [...]. É necessário de um lado, produzir a liberdade, mas esse gesto mesmo implica que, de outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc.” (id., ibid.).

O liberalismo não aceita a liberdade, ele a produz, a fabrica, transforma-a em mercadoria a ser consumida. Esses são, ao que me parece, os limites da liberdade liberal, especificamente aquela através da qual se justifica a estratégia política e econômica dos libertarians como Thiel. A criação de uma determinada plataforma tecnológica e de uma infra-estrutura organizacional é parte integrante dessa estratégia, as redes sociais são apenas uma dessas plataformas, cujo financiamento para seu desenvolvimento está relacionado a constituição de uma estrutura organizacional envolvendo empresas e fundos privados de capital de risco, o estado e fundos públicos para o financiamento de empresas de capital de risco que investem em jovens programadores como Zuckerberg  que estão desenvolvendo tecnologia da informação de interesse das agências de segurança do governo. Seguindo o pensamento de Foucault, a nova razão governamental necessita da liberdade para manter tudo sob seu controle, como já não consegue mais fazer isso sozinho, estabelece relações público-privadas para viabilizar seu projeto de produção e consumo de liberdade.




BIBLIOGRAFIA

ARENAS, R. Antes que anoiteça. Rio de Janeiro: Record, 1995.
FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
MOURA, M. L. Serviço militar obrigatório para a mulher? Recuso-me!Denuncio! São Paulo: A Sementeira, 1933.
NUSSBAUM, M. A República de Platão: a boa sociedade e a deformação do desejo. Porto Alegre: Editora Bestiário, 2004.
ONFRAY, M. A potência de existir: manifesto hedonista. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.


OUTRAS REFERÊNCIAS

Os quadrinhos utilizados no texto foram retiradas do blog do André Dahmer http://malvados.files.wordpress.com/

A publicidade do fórum da liberdade foi retirado do jornal Correio do Povo de 2008.

A imagem que mostra a cronologia da soldada desaparecida em Passo Fundo e encontrada morta é do jornal Zero Hora de 2011.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Um amor de Swann


Mas na idade já um pouco desiludida da qual se aproximava Swann e na qual uma pessoa sabe se contentar em estar apaixonada pelo simples prazer de estar, sem fazer demasiadas exigências de reciprocidade, tal aproximação de corações, se não é mais, como na primeira juventude, o objetivo para o qual tende necessariamente o amor, permanece em compensação unida por uma associação de ideias tão intensa que pode dele se tornar a causa, caso antes dele se apresente. Sonhava-se outrora possuir o coração da mulher pela qual se estava apaixonado; mais tarde, sentir que se possui o coração de uma mulher pode bastar para que se fique apaixonado. Assim, na idade na qual pareceria, já que se busca sobretudo no amor um prazer subjetivo, que a parte do apreço pela beleza de uma mulher deve ser a maior de todas, o amor pode nascer - amor dos mais físicos - sem que tenha existido, na base, um desejo preliminar. Nessa época da vida, já fomos muitas vezes atingidos pelo amor; ele não mais evolui apenas de acordo com as suas próprias leis desconhecidas e fatais diante de nosso coração surpreso e passivo. Nós vamos em seu auxílio, nós o falseamos com a memória, com a sugestão. Reconhecendo um de seus sintomas, lembramos, fazemos renascer os outros. Como possuímos sua canção inteira em nós gravada, não precisamos que uma mulher nos diga o início - repleto da admiração que a beleza inspira - para encontrarmos a continuação. E se ela começa pelo meio – lá onde os corações se aproximam, onde se fala de não mais existirmos senão um para o outro –, estamos bastante habituados à música para irmos de imediato ao encontro de nossa parceira, no trecho em que ela nos espera.

PROUST, M. Um amor de Swann. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 25-26.